I –
O telefone tocou. Ela correu para atender e sentou no sofá. Eu observava tudo de baixo da mesa enquanto brincado com alguns dados de plástico. Seu olhar era de quem não entendia nada e sua voz começou a embargar. Colocou a mão na boca, em um ato de susto ou estupor. Disse algo como “Não!” ou “Ah meu deus...”. Começou a chorar, o que ouvira deveria ser realmente grave. Levantei-me para consolá-la e larguei os dados sozinhos. Não entendia, como poderia? Tinha lá meus sete ou seis anos. Cabelos pretos que caíam nos olhos e doces sonhos de alvorecer. Era quase pura inocência, apesar de ser bem sensível ao que os outros demonstravam sentir.
Na véspera todos ficaram muito abalados, perguntei mil vezes o que acontecia, mas ninguém quis falar. Tentavam me ludibriar mudando de assunto. Estavam na sala de estar com aquelas caras de preocupação, o cenho franzido, braços cruzados... Alguns perguntavam aos outros: O que vamos fazer agora?.
Empurrava um carrinho desviando das pessoas em pé. Olhavam-me como se eu fosse um coitado, um mendigo ou alguém morrendo de fome. E pensavam em segredo “Pobre menino!”.
Ela continuava a chorar, corri e a abracei com força, como quem quer estancar uma ferida. Já era tarde e não sabia porque ninguém tinha me mandado subir e dormir, por isso estava feliz e não entendia porque ela chorava. Perguntei:
_ Você se machucou?
Sem poder falar balançou a cabeça e limpou a face, parecia que tinha vergonha das próprias lágrimas. Abaixou o rosto e fechou os olhos me apertando forte contra os seios, como quando me ninava. Acho este o momento mais terno da minha vida, mesmo que não pudesse compreender a dimensão do problema que se apresentava na minha frente.
Fica na minha mente, um quadro na parede: a fotografia dela me fazendo cafuné no sofá enquanto chorava. Tem coisas que os adultos tentam nós proteger que não adianta nada. Acho, que querem que a criança seja um consolo. Só depois que puderam digerir a idéia que tiveram coragem de me contar. E foi ela que me contou. Eu lembro como se tivesse acontecido agora. Entrou no meu quarto com um lenço na cabeça e os olhos tristes. Tinha perguntado mil vezes pela minha mãe e pelo meu pai nos últimos dias, só me esquecia deles quando estava distraído com algo.
_ Galileu, precisamos conversar _ ela disse
_ Sobre o que vó ?
Ela se sentou na beira da cama me olhando com olhos secos. Havia a visto chorando pela casa várias vezes naquela semana. Queria parecer séria, mas nem me deu bronca quando derrubei leite no chão da sala, naquela tarde. Não queria que eu percebesse a sua dor.
_ Sobre a mamãe e o papai.
_ Eles chegaram?
_ Não! _ sua voz tremeu e se calou como quem não consegue falar depois respirou fundo e continuou _ Eles não vão voltar.
_ Não?
_ É assim que as coisas acontecem, meu filho. Lembra daquele peixinho que você tinha?
_ Sim _ comecei a pensar no que poderia ter acontecido era criança, mas sabia o que era a morte, apesar de não entender.
_ Ele morreu, se lembra?
_ Papai e mamãe morreram?
_ Sim...
Ela abriu os braços e me acalentou. Continuei achando que eles iriam chegar em algum momento. Passei horas a fio pensando sobre a morte, sobre como morreria, como eles morreram. Disseram que não passou de um choque que envolveu o carro deles e o de um outro homem, que também não suportou. Ainda foram para o hospital, mas nada aconteceu, talvez aquele não fosse o dia de sorte deles.
Preocupados com todo tipo de problema nos afundamos, sensatos, entre a vida no agora e um plano futuro. E mesmo com a morte tão perto existe um extremo medo do fim. O problema é que o fim está aqui presente. Morremos por segundo, diria até por prestação. Morremos até antes de nascer! Para só no fim apenas parar de funcionar. É como uma velha fabrica, que falhe de pouquinho em pouquinho até a decadência total. Nada é "de uma vez para sempre". Ou melhor, tudo é para sempre. Tudo se renova, como já diziam mesmo antes de eu nascer, há milênios. Todos nós: com a mão na manivela da vida. Mas o que é a vida? Será apenas um sopro ou puro conhecimento? Para mim, naquele instante a vida era algo tão frágil quanto um vidro que caí e quebra. Mais frágil do que eu. A minha referência de fortaleza e bravura, agora tinha morrido. E a morte se tornou forte, um monstro robusto que morava no meu armário e crescia a cada pergunta minha.
Era necessário que eu cortasse alguns laços, apesar das pessoas a quem estava preso estarem mortas. Muito complicado para uma criança de sete anos... A liberdade que não queria existir e uma falta de algo que nem sabia. Estava preso a lembranças que conforme os anos passavam se perdiam mais. Agora são tão remotas que nem consigo recordar. Eu morri com eles, fui enterrado naquele dia em que fiquei com a vizinha para que minha avó fosse ao velório.
O mundo é cruel. “The Word be cruel”. Pedaços pequenos que se juntam para se tornar um todo visível, para tornar o reflexo de todas as coisas possíveis ou impossíveis. Cresci muito recluso, sempre com poucos amigos, isso causou em mim certa insegurança. Não sei fazer boas escolhas. E a morte ainda está no meu quarto, no armário. Por vezes é pequena. Outras, grande e insuportável de controlar, mas na maior parte das vezes me soprar coisa no ouvido. Coisas muito difícil de ouvir e encarar, que não abro á ninguém. Só a você é claro.
II –
A madrugada fria e sua melancolia poética. Pessoas caladas indo trabalhar, vagabundos dormido no chão da rua e o sol clareando tudo... Decidi que não ficaria mais trancado em casa, o problema é que isso já fazia três dias. Não dormi direito e estava sonolento da frente da janela. A chuva caía devagar, e os dias passavam tão rápido que me faziam pensar em tantas coisas que nem sei dizer. Sensações de solidão. Nó na garganta.
Posso ouvir o cansaço de viver, de vez em quando. A corrosão das minhas veias pelo tempo e a esperança de um sonho realizar. Muitas vezes sou um zumbi, impondo minha sobrevivência ao mundo. Outras, sou o ânimo, que abre a porta da rua e saí para os dias lá fora. Não me entendo, e nem sei quem sou...Meu mundo fica onde nem todos podem entrar, pois tem uma ponte bem na entrada. Quem consegue atravessá-la me vê no infinito das minhas perguntas.
Queria lembrar o que pensei naquele instante para levantar de súbito e sair de casa. Saí andando bem devagar para sentir as coisas em volta, principalmente os cheiros. Gosto dos cheiros eles despertam outra parte de nós. Lembro dos cheiros da minha adolescência, são os mais marcantes. Lápis novo, castigo, chocolate, chiclete, paixões, tapete, brinquedo, animais, estilhaços, álcool, corações partidos e devorados.
Dobrei em uma rua que nunca tive curiosidade de conhecer. Andei um pouco, e lá longe pude ver uma praça. A madrugada fria fazia com que as pessoas se enclausurassem como eu, neste feriado deprimente. Andei um monte, a rua era estreita e longa.Veio-me a imagem da minha avó. Não gosto de pensar nela, porque trás a lembrança dos meus pais, embora este quadro esteja muito apagado. Já faz muito tempo... Era muito pequeno...
Na praça tinha alguns mendigos dormindo nos bancos. O parquinho onde as crianças devem estar acostumadas a brincar parecia sombrio, não tinha ninguém. Só a brisa que fazia o balanço ir e vir. Apesar desta solidão inóspita, uma pessoa me chamou atenção: Parecia ter um vinte e poucos, tinha os cabelos desgrenhados, estava molhada, bem vestida e bebia com raiva uma garrafa de uísque importado. Não sei o que me deu, acho que por um instante devo ter deliberado. Fui até ela, e perguntei:
_ Olá, você está bem? Parece com frio.
_ Não é só aparência _ ela respondeu ríspida.
_ De certo, está muito frio. Não quer meu casaco?
_ Quero! _ percebi que estava completamente embriagada_ Se quiser me dar...
Tirei o casaco e coloquei em volta de seus ombros, parecia que o frio cortava a minha pele. Durante toda minha investida, na esperança de sua atenção, ela manteve os olhos fixos em um mesmo ponto, como se estivesse hipnotizada.
_ Você tem... Quer dizer... Onde é sua casa?
_ Não tenho mais.
_ Então onde era sua casa?
_ Não interessa.
_ Oh, interessa sim! Eu me interesso.
_ Você não iria entender mesmo!
_ Claro que iria. _ me sentei no banco ao lado dela
_ Iria? Jura? _ pela primeira vez vi seus olhos, vermelhos com olheiras horríveis. Olhava-me com estupor e desespero.
_ Sim. Juro.
_ Se eu contar promete que não irá me sacrificar? Promete que não vai contar para ninguém?
_ Claro. Pode confiar, sou de palavra.
_ Certo._ colocou a garrafa no chão e se ajeito no banco para me ver melhor_ Eu fugi. Foi isso.
Foi tão simples que nem entendi direito o que ela queria dizer. Sentia perto de mim o hálito fermentado do uísque. Não sabia se ria ou se me comovia com a figura magra na minha frente. Por tão poucas informações perguntei novamente:
_ Fugiu de onde?
_ De casa, ué!
_ Ah... Mas você morava com quem?
_ Com o Carlos. _ ela começou a bocejar e piscar os olhos com freqüência, parecia que não me via direito
_ Quem é Carlos? Ou melhor o que ele é seu?
_ Não me fala dele! Odeio o Carlos
_ Ta bom se acalme não falarei mais do Carlos...
_ Você tem uma cama aí?
_ Aqui não, mas na minha casa tem.
_ Está decidido! Vamos para sua casa.
_ Parece mesmo uma boa idéia. Deixar-te aqui seria maldade.
_ Maldade?
_ Vamos!
Fomos para casa, logo que chegou se jogou na minha cama e dormiu um sono profundo. Senti-me bem com alguém em casa. Não era mais tão só.
III-
Era quase meio dia quando ela acordou. Estava perturbada. Franzia o cenho, como quem está com muita dor de cabeça.
_ Onde estou? Quem é você? _ perguntou
_ Eu sou Galileu, prazer _ estendi a mão para que ela apertasse, mas abaixei pois não se depôs a nenhum gesto recíproco, parecia agora rude e amedrontada _ Não se preocupe, você está na minha casa. Nos conhecemos esta madrugada, quer dizer... Eram umas seis ou sete... Aliás, como é seu nome?
_ Laura. Você costuma recolher pessoas bêbadas no meio da rua?
_ Não, mas você que me pediu...
_ Muito obrigada Galileu. Acho que você deve ser uma pessoa muito generosa... Mas agora tenho que ir.
_ Não! Fique, tem café aí. Coma alguma coisa.
_ Muito obrigada, mas tenho mesmo que ir.
_ Eu insisto._ ela deu um suspiro e por acabou cedendo.
Percebi uma grande mudança de humor. Realmente devia estar muito bêbada. Contei-lhe como a encontrei e como viemos para casa. Não disse quase nada, agora Laura pôs um muro intransponível para mim, estava muito sóbria. Senti-me só novamente, apesar de tê-la na mesa junto comigo.
_ Me conte que é Carlos.
_ Eu te falei dele?
_ Não. Só disse o nome. Ficou muito brava quando perguntei quem era.
_ Carlos é meu ex-marido._ abaixou o olhar _ Saí de casa e deixei um bilhete em cima da cama. Problemas de relacionamento... Tem coisas que não dá para concertar. Roubei as duas garrafas de uísque importado dele e fui. Deixei tudo lá.
_ Por isso foi parar na praça?
_ Eu nem sei como fui parar naquela praça._ deu-me um sorriso de menina traquina_ E você? Já fugiu?
_ Sim, uma vez. Logo depois que meus pais morreram. Mas atravessei a rua do outro quarteirão e voltei. Tive medo.
_ Meus pêsames...
_ Tudo bem.
_ Tinha quantos anos?
_ Uns seis ou sete. Não me lembro...
Ficamos ali, calados. Um olhando para o outro. Laura sentindo minha dor, e eu querendo que não sentisse. Parecia constrangida, acho que não sabia como lhe dar com um assunto como a morte, e os rastros que ela deixa.
Dos meus pais não tenho lembranças que se valha, como já disse, só uma neblina que mistura ternura e amor. Não deixaram nada. Lá pros meus dezessete tive uma crise de fúria e queimei todas as fotos que tinha deles. Nenhuma lembrança material, nenhum bibelô ou jóia. Só a neblina, densa e torturante.