1 - Esta é solidão

Cansado chegou de mais um dia. Chamou por ela na cozinha, na sala, no quarto... Não estava. Franziu a testa, depois de tantas discussões... Pensou no pior, seria fácil para ela. Porém, para ele não. Investigou os armários, as roupas os perfumes. Não poderia ter o largado e deixado tudo aqui. “Deve ter ido á padaria ou coisa parecida”, pensou. Mas viu o papel em cima da cama - letras borradas de choro. E lá estava escrito:

“Desde de quando comecei a pensar na vida como um vicio? Acho que depois de você. A vida é um monte de coisas sobre um outro monte de outras coisas... Ponho as mãos no peito para sentir o pulsar. Mas não sinto nada. Fecho os olhos e penso em jogar paciência. Paciência. Meu sangue negro escorria e caía no chão costurando fundo no sopro dos meus conselhos. A decepção. Rasguei os papeis sobre a mesa e cantei uma cantiga de acalentar enquanto dançava dois pra lá, dois pra cá. Lembra-se? Descompassada, já estava tonta e bêbada. Por isso fui com você. Você tinha cheiro de prazer e toque macio. Tudo se desfez e me vi nos seus passos. A luz entrava pela janela e não estava mais tão inquieta. Sinto... È difícil dizer... Sinto que... Quero morrer! Quero sentir a luz do reflexo da lua em mim. Meu corpo ao seu puro cheiro, como se estivesse acabado de sair de um banho quente. Pente e escova. Seus poemas roubados, seu dinheiro, seus poderes... Pra mim? Nem se tivesse que viver esta solidão para sempre. E sei que vai ser assim, mesmo que eu não queira. Eu sei que quero ir, sei que tenho que ir. Por isso me vou!”

Nos primeiros instantes, teve vontade de matá-la. Não queria morrer? Pois se ela estivesse ali, a mataria. Mas depois de alguns segundos, sentiu culpa. Veio o choro, à vontade de voltar no tempo. Não seria fácil, ele sabia desde do primeiro instante que a viu. Lembrou da imagem dela embriagada de Martini e cólera no bar escuro. E soluçou enquanto morria por dentro, seu mundo estava decompondo-se de pouco em pouco. Sentiu-se pequeno, ineficaz e apenas um monte de poeira cósmica inútil. “Liberdade? Isso é egoísmo!”, berrou e o eco se fez ouvir no vizinho. Cólera, raiva, amor, culpa, enjôo, nojo e um instinto telepático de impotência.

O impossível não existe, por isso o que digo é algo que não tem o outro lado, apenas devorando as imagens familiares da mente dela, para traduzi-las a você. Ela se chamava Solidão. Nome escolhido pela mãe e aceito pelo pai. Tinha olhos de sol, desta forma foi apelidada por “Sol”. Mas seu semblante era a lua, era a sede, o céu escuro de chuva e o medo de nada que acreditava existir. E quando acreditava, era um acreditar descondensado que se derretia na paixão da crença. Defendia com garras e dentes afiados sua vida, mas se de tudo fosse preciso, a morte aceitaria. Morte de suas células e moléculas que bordavam o tempo com lembranças fúteis. Acompanhava os passos reservados dos outros, para não ter que fazer escolhas e depois se arrepender. Morria por não saber viver... Esperava o tempo todo por mais de um desligamento, pela profundidade do sempre. Paradoxo. Lamentava por estar sendo assim. Ela: um adjetivo próprio.

Pode me vê-la como quiser. Podem até se identificar com solidão. Eu deixo. Mas saberiam, que isso é arriscado pois nesta história ela é boa, é ruim e bem no meio: neutra. E as tempestades com que se perde são as mesmas coisas que você chama de ‘besteiras cotidianas’. Além disso as pessoas que passam na rua (de cabeça baixa, ar sério, andar rápido e um cabelo da moda) a desaperta nojo. É realmente desesperante e inevitável. Apesar de tudo Solidão é você em parte, mas sou eu, em tudo que nunca você viu. Define-se muito bem sucintamente como “O colateral das margens de erro”. E nos dias frios e insossos se cobre de culpa para chorar na frente da janela molhada.

Foi parar em uma praça por não ter aonde ir, e escrevia em um pedaço de papel: “Chorei naquela tarde, chorei com força, para poder olhar para frente de noite. Pintar os olhos e sentir frio na rua.”

Não sabia por que ficara ali na insossa solidão que a comia devagar. Na sarjeta de um banco frio com um litro de conhaque importado, que roubou do marido antes de fugir de casa. E para piorar começou a chover. O vento em seus cabelos e vontade de acabar com tudo, ficou ali parada com olhar fixo no nada. Bebeu mais um gole e pensou que amanhã seria terça-feira... Ela estava sendo como lindonéia: matando seu amor de dor.

“Solidão... Solidão... Retoquei o céu de anil mas a redenção não veio”, pensou, “Fazer o que?”

Tão bem ouvido era o som da menina gritando enquanto se debatia contra a raiva escancarada dentro de si. Pequenos olhinhos olhando para o infinito para não sentir a pura infinidade da dor latejante. Doía mais não era só pela pele, doía por dentro, sangrava internamente. Um sangramento que voltaria a jorrar mais tarde, depois de uma emancipação deste mundo para o mundo que ela iria criar. O mundo de descobertas alucinantes e fantasias futuras, que talvez, nunca se realizariam. Aí então choraria por fora, mas não saberia bem o ‘porque’, só uma forte dor latente da ferida que nunca cicatrizou. E nada mudaria... Só a solidão, que pareceria cada vez mais confortável onde encontraria o regato para sua sede que se convertera , agora, em angustia. Desconcertada sairia de manhã em busca de algo. Todos os dias sem poder escolher como ou o quê. Emocionaria-se com os sensacionalistas e morreria com poemas nas mãos.

Lembrou da época que estava ainda na escola. Sorriu e bebeu mais um gole. Podia até sentir o cheiro de lápis novo, do carpete, das crianças gritando, chorando, brincando... Esses cheiros do calor intenso das descobertas trigueiras. Para ela, nada melhor que os cheiros, eles regem uma outra parte de nós. Tudo se confundia: pasta de dente, chá, ano novo e chiclete. Tudo em uma grande mistura de solidão ou em Solidão, como quiser.

"Botas de morte"

"Todos nós trêmulos em nossas botas de mortalidade NASCIDOS PARA MORRER"
Jack Kerouac

Tudo bem, apesar de tudo posso viver! Ou melhor, morrer. Cientistas comprovam (e isso quem diria bem era Manuel), que mesmo antes na nascer estamos morrendo. Mesmo antes de nascer! Preocupados com todo tipo de problema os humanos sensatos andam em uma linha tênue que divide a vida da morte, o sim do não, o paradoxo do real... Mas apesar de tudo existe um extremo medo do fim. ('Oh ... Não me diga!', diria você leitor ao ler estas ultimas palavras). O problema é que o fim está aqui presente. Morremos por segundo, diria até por prestação. Para só no fim apenas parar de funcionar. É como uma velha fabrica, que falhe de pouquinho em pouquinho até a decadência total. E mesmo com as graves doenças que se alastram na humanidade, existe uma ordem para o consumo do corpo até seu fim. Nada é "de um vez para sempre". Ou melhor tudo é para sempre. Tudo se renova, como já diziam mesmo antes de eu nascer, há milênios. Todos nós com: a mão na manivela da vida. Mais o que é a vida? Será apenas um sopro ou puro conhecimento? Enquanto não sabemos só podemos recuar e esperar as próximas jogadas neste inerte 'leva e traz'.